segunda-feira, novembro 15, 2010

O mal que os homens bons fazem

"Todos nós sabemos o que queremos dizer com homem 'bom'. O homem bom ideal não fuma nem bebe, evita linguagem de baixo calão, conversa na presença de homens exatamente o que falaria se houvesse mulheres presentes, vai à igreja com regularidade e tem ipiniões corretas sobre todos os assuntos. Tem verdadeiro horror ao mau procedimento e está ciente de que é nosso doloroso dever punir o Pecado. Tem horror ainda maior a pensamentos errados e considera ser responsabilidade das autoridades proteger os jovens contra os que questionam a sabedoria das opiniões aceitas, de modo geral, pelos cidadãos de meia-idade bem-sucedidos. Além dos seus deveres profissionais, aos quais é assíduo, ele dedica muito tempo a trabalhos que visam ao bem: pode estimular o patriotismo e o treinamento militar; pode promover a indústria, a sobriedade e a virtude entre os assalariados e seus filhos, cuidando para que as falhas sejam devidamente punidas; pode ser o curador de uma universidade e evitar uma admiração imprudente e precipitada pelo aprendizado por permitir a admissão de professores com idéias subversivas. Acima de tudo, é claro, sua 'moral', em um sentido limitado, deve ser irrepreensível.
Pode-se duvidar se um homem 'bom' no sentido acima descrito faz, na média, mais bem do que o homem 'mau'. Quando digo 'mau', me refiro ao homem oposto ao que estive descrevendo. Um homem 'mau' fuma e bebe ocasionalmente e até xinga quando pisam nos seus calos. Sua conversa nem sempre pode ser impressa e, às vezes, passa os domingos ao ar livre, e não na igreja. Algumas de suas opiniões são subversivas; por exemplo, ele pode pensar que, se desejamos a paz, devemos trabalhar pela paz, não pela guerra. Assume uma atitude científica contra o mau procedimento, como tomaria com seu atumóvel se ele se comportasse mal; argumenta que sermões e prisões não irão curar mais o vício do que remendar um pneu furado. No que se refere aos maus pensamentos, ele é ainda mais perverso. Sustenta que o chamado 'mau pensamento' é apenas um pensamento, e o chamado 'bom pensamento' consiste na repetição de palavras como um papagaio, o que lhe confere empatia a todos os tipos de excentricidades indesejáveis. Suas atividades fora do horário de trabalho podem consistir, basicamente, em divertimento ou, ainda pior, em fomentar descontentamento em relação a males evitáveis que não interferem no conforto dos homens no poder. E é até mesmo possível que, em se tratando de 'moral', talvez ele não considere seus lapsos de modo tão cuidadoso como faria um homem verdadeiramente virtuoso, defendendo-se com a perversa contra-argumentação de que é melhor ser honesto do que fingir dar um bom exemplo. Ao falhar em um ou em vários desses aspectos, um homem será considerado doente pelo cidadão médio respeitável e não terá permissão de assumir qualquer cargo de autoridade, como a de um juiz, um magistrado ou um diretor de escola. Esses cargos são ocupados somente por homens 'bons'".

Esse trecho faz parte do livro "Ensaios céticos", de Bertrand Russel. Impressionante forma de abordar o assunto da bondade, me faz pensar, entre outras coisas, que se trata de um excelente e vasto campo de pesquisa.

quinta-feira, julho 29, 2010

Eu sou atriz pornô, e daí?

Já fiz elogios ao que Contardo Calligaris escreve. Alguns de seus livros me ajudaram (e ajudam) na minha formação de psicanalista, com seu senso crítico bastante arrojado e sensível. Por este motivo, publico no Cotidianenses um texto dele que saiu na Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, no dia de hoje. O título do original é o que deu origem ao título do post. A figura acima não faz parte do texto original.

Boa leitura! Comente.


RESISTI A pedidos e pressões para que comentasse o caso do goleiro Bruno. Não gosto de especular sobre investigações inacabadas ou acusações ainda não julgadas.
No entanto, especialmente nos crimes midiáticos, sempre há fatos e atos que merecem comentário e que não dependem da culpa ou da inocência de suspeitos ou acusados.
Por exemplo, durante a investigação sobre a morte de Isabella Nardoni, o fato mais interessante era a agitação da turba: diante da delegacia de polícia, os linchadores pulavam e gritavam indignados só quando aparecia, nas câmeras de TV, a luz vermelha da gravação.
Há turbas parecidas no caso do goleiro Bruno. E, além das turbas, também alguns delegados de polícia parecem se agitar especialmente quando as câmeras estão ligadas, o que, provavelmente, não contribui ao progresso das investigações.
Mas o que me tocou, nestes dias, foi outra coisa. Segundo o advogado Ércio Quaresma Firpe, que defende o goleiro Bruno, a polícia estaria investigando um crime inexistente, pois Eliza Samudio estaria viva e se manteria em silêncio e escondida pelo prazer de ver o Bruno acusado e preso. Para perpetrar essa vingança, aliás, Eliza não hesitaria em abandonar o próprio filho de cinco meses.
É uma linha de defesa que faz sentido, visto que, até aqui, o corpo de Eliza não apareceu. Mas o advogado Firpe, para melhor transformar a vítima presumida em acusada, tentou apontar supostas falhas no caráter de Eliza soltando uma pérola: "Essa moça", ele disse, "é atriz pornô".
Posso imaginar a expressão que acompanhou essa declaração: o tom maroto que procura a cumplicidade de quem escuta, uma levantadinha de sobrancelhas para que a alusão confira um valor especialmente escuso à letra do que é dito.
Estou romanceando? Acho que não. De mesa de restaurante em balcão de bar, já faz semanas que ouço comentários parecidos, de homens e mulheres, mas sobretudo de homens: Eliza Samudio era "uma maria chuteira", uma mulher fácil.
Será que essas "características" de Eliza absolvem seus eventuais assassinos? Claro que não, protestariam imediatamente os autores desses comentários. Mas o fato é que suas palavras deixam pairar no ar a ideia de que, de alguma forma, a vítima (se é que é vítima mesmo, acrescentaria o advogado Firpe) fez por merecer.
Pense nos inúmeros comentários sobre o caso de Geisy Arruda, aluna da Uniban: tudo bem, os colegas queriam estuprá-la, isso não se faz, mas, também, como é que ela vai para a faculdade com aquele vestidinho curto e tal?
No processo contra um estuprador, por exemplo, é usual que a defesa remexa na vida sexual da vítima tentando provar sua facilidade e sua promiscuidade, como se isso diminuísse a responsabilidade do estuprador. Isso acontece até quando a vítima é menor: estuprou uma menina de 12 anos? Cadeia nele; mas, se a menina se prostituía nas ruas da cidade, é diferente, não é?
Diante de um júri popular, essas considerações funcionam, de fato, como circunstâncias atenuantes: talvez estuprar "uma puta" não seja bem estupro.
Em suma, quando a vítima é uma mulher e seu algoz é um homem, é muito frequente (e bem-vindo pela defesa) que surja a dúvida: será que o assassino ou o estuprador não foi "provocado" pela sua vítima?
Atrás dessa dúvida recorrente há uma ideia antiga: o desejo feminino, quando ele ousa se mostrar, merece punição. Para muitos homens, o corpo feminino é o da mãe, que deve permanecer puro, ou, então, o da puta, ao qual nenhum respeito é devido: uma mulher, se ela deseja, só pode ser a puta com a qual tudo é permitido (estuprá-la, estropiá-la).
Além disso, se as mulheres tiverem desejo sexual próprio, elas terão expectativas quanto à performance dos homens; só o que faltava, não é? Também, se as mulheres tiverem desejo próprio, por que não desejariam outros homens melhores do que nós?
Seja como for, para protestar contra a observação brejeira do advogado Firpe, mandei fazer uma camiseta com a escrita que está no título desta coluna. Mas o ideal seria que ela fosse adotada pelas mulheres. Podem mandar fazer, sem problema; o advogado Firpe não tem "copyright" da frase.
ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, julho 15, 2010

A Cultura

É isso a cultura: tudo o que o homem inventou
para tornar a vida vivível e a morte afrontável.
Aimé Césaire

sábado, junho 19, 2010

José Saramago


O que perde a vida quando morre um gigante? Afortunadamente, li no Twitter uma ótima resposta, à qual me curvo em agradecimento e tomo para minha existência: "[...] segue a humanidade, um pouco mais indefesa...". Perde, também, um pouco da alegria da rebeldia.

segunda-feira, abril 12, 2010

Do que é quantificável

Não há dúvida de que vivemos num mundo onde os números se superam a cada dia. É a sua importância que direciona investimentos, consolidação e construção de políticas públicas, incrementa as tecnologias para o mergulho virtual, indica popularidade e aponta caminhos para relevantes decisões. Assim, não deixam de ser notórios os verbos de ordem em nosso tempo: contabilizar, medir, calcular e classificar.

Elementos que atingiram certo patamar de naturalidade em nossa cultura, tais termos de comparação podem ser facilmente encontrados em publicações como o famoso Guinness Book of Records. Com a primeira edição publicada em 1955, em Londres, segundo seu site oficial: “Nenhuma outra iniciativa reúne, confirma, homologa e apresenta dados sobre recordes mundiais com o mesmo nível de investimento em termos de abrangência e autenticidade” (fonte: http://www.guinnessworldrecords.com/br/history.aspx). Bom, nem precisa dizer que a marca Guinness é detentora de um dos maiores registros de publicação, vendagem e tradução da história editorial.

Mas, detenho-me à quantificação em questão.

Não bastasse os inúmeros algarismos que atravessam nosso dia-a-dia, recebo de um amigo a notícia de que havia sido batido o recorde de “maior beijo coletivo do mundo”. Tal proeza foi alcançada em show de Claudia Leitte e banda, realizado em 2009, em Belo Horizonte. Teriam se beijado 8372 casais ao som de “Beijar na boca”. Façanha realizada, cabe perguntar: o que significa isso? Números, casais, beijos e corpos com o único propósito de bater um recorde?

Nunca a sexualidade esteve tão liberta e nunca o conhecimento e a crítica se desvincularam tanto do conteúdo de nossa caixa craniana. Talvez não se tenha atentado para o quanto nossa sociedade tem vivido em estado de sofrimento psíquico. De qualquer forma, nunca a ingestão de medicamentos para diminuir a sensação de solidão e de tédio chegou a um nível tão alarmante quanto agora, como também nunca o corpo se viu em tamanha enrascada: ser livre e ter que atender às obrigações consuetudinárias. Deixa-se de lado a busca que o desejo provoca em favor da pseudosegurança que a boca do outro pode proporcionar no momento de uma foto, em prol de um apelo à performance alienante de apenas contar mais 1.

terça-feira, abril 06, 2010

"A fita branca" e o Tibete

Assisti recentemente a um dos filmes mais intrigantes da atualidade. Trata-se de "A fita branca", de Michael Haneke. Muitos já devem ter lido a sinopse do filme e sabem que a película narra a história de uma comunidade rural na Alemanha, entre 1913 e 1914, onde diversos incidentes violentos vão ocorrendo. Não se esclarece a autoria dos atos que tumultuam a comunidade, mas Haneke nos faz entender que a violência ali anda de mãos dadas com o pueril e é reforçada pela postura dos que supostamente deveriam evitá-la (o pastor, o médico, os empregados do barão). Para muitos, não é à toa que o filme se desenrola num período próximo ao do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), já que os acontecimentos daquele vilarejo seriam um prenúncio do que veio a ser o nazismo. Por relatar uma situação ficticiamente ocorrida numa pequena cidade alemã, julga-se que lá, portanto, já se encontravam sinais da geração que apoiou a subida do Führer ao poder.
O filme faz pensar na teoria em que inculca aos germânicos o status de povo sórdido, porque rígido em suas expressões e falas e por ter aceitado a ideologia hitlerista exposta desde Mein Kampf. Ora, pode-se dizer que a mensagem transmitida por esta teoria é a de que precisamos ainda de um local, de uma pessoa, de um povo, de um personagem que represente aquilo de pior que o humano pode fazer a si próprio. Tendo um lugar para apontarmos como o autor-mor do pior, estaríamos libertos da aflição de vermos o pior que fazemos ao nosso redor.
Slavoj Zizek, em artigo na Folha de São Paulo de 13/04/2008, quando da invasão chinesa ao Tibete (local que é um dos maiores representantes do desejo de paz no mundo), argumenta de forma inspiradora quanto ao que se espera dos tibetanos. Reproduzo um trecho do texto: "Nosso fascínio pelo Tibete o converte numa entidade mítica sobre a qual projetamos nossos sonhos. Assim, quando as pessoas lamentam a perda do autêntico modo de vida tibetano, não estão, na verdade, preocupadas com os tibetanos reais. O que querem dos tibetanos é que sejam autenticamente espirituais por nós, em lugar de nós mesmos o sermos, para continuarmos a jogar nosso desvairado jogo consumista" (ver em http://migre.me/ujDH). Pois então, que os alemães continuem, até hoje, sendo autenticamente hediondos por nós! Melhor que nós mesmos o sermos... Melhor isso do que nossos próprios microfascismos cotidianos ficarem escancarados ao olhar no espelho...
Que fique a mensagem de Michael Haneke sobre seu filme, que o mal não seja entendido como mácula de um povo para que possamos entendê-lo um pouco mais: “Não ficaria feliz se esse filme fosse visto como um filme sobre um problema alemão, sobre o nazismo. Este é um exemplo, mas significa mais que isso. É um filme sobre as raízes do mal. É sobre um grupo de crianças, que são doutrinadas com alguns ideais e se tornam juízes dos outros – justamente daqueles que empurraram aquela ideologia goela abaixo deles. Se você constrói uma idéia de uma forma absoluta, ela vira uma ideologia. E isso ajuda àqueles que não têm possibilidade alguma de se defender de seguir essa ideologia como uma forma de escapar da própria miséria. E este não é um problema só do fascismo da direita. Também vale para o fascismo da esquerda e para o fascismo religioso" (ver em http://migre.me/ujDc).

terça-feira, março 16, 2010

... e para quem?

Com certeza você já reparou. Há um movimento na atualidade que tenta incrementar uma correta politização das condutas. Sim, é verdade, e você já viu isso em algumas partes da cidade: são mensagens sobre como devemos nos conduzir no trato com o outro. Normalmente, esse recadinho vem florido, todo coloridinho, seguindo também uma estética bastante particular, a chamada clean, que não agride os olhos para que o coração também não perceba. Seu discurso é bastante claro: sinceridade, honestidade, preservação, limpeza, Bem para todos - ícones da etiqueta do atual cotidiano. Você pode pensar: "Ah, legal. Hoje em dia, as pessoas estão mesmo muito individualistas, não querem saber do meio ambiente, esqueceram o bom caratismo". Consideração importante. No entanto, a foto acima traz algo além dessas mensagens, digamos, positivas. Pois é. A pergunta "De quem?" destoa como que provocando quem deseja todo esse Bem contido no cartaz da campanha. É algo que realmente modifica e subverte o discurso ali apresentado. De qual Bem se trata? ... E para quem?
Parece-me que se trata do Bem contrário do Mal (claro!), mas a noção do Mal está muito inespecífica hoje em dia. Por exemplo, antes, sabíamos de maneira bastante objetiva quem eram os bonzinhos e quem eram os que deveriam ser derrotados nas guerras. As batalhas expunham um confronto direto entre os inimigos - lembre do Kuwait, no início dos anos 90, ou até mesmo das batalhas dos filmes de época. Com os anos 2000, porém, não se combate mais o inimigo, mas o Mal (afinal, é uma "guerra contra o Mal"), que, com a onda do fundamentalismo e toda a paranóia que se criou com isso, pode ser tudo e qualquer um. Ser tudo e qualquer um. Perceba, então, que o Bem, se for o contrário de Mal, é tão extenso e inespecífico quanto este último. Algo bastante diverso da época aristotélica, em que se buscava o Bem Supremo, a felicidade de estar próximo de Deus, local de completude.
"Atitudes do bem" e felicidade não deveriam ser um imperativo, ainda mais de algo tão inespecífico. Mas, ambos o são, e são apresentados como tal, fazendo com que a sensação de completude se dê pela ausência do querer. E como viver assim? Imperativos são para quem tem medo de desejar.

domingo, fevereiro 28, 2010

As Janelas

XII

Hoje estou com humor pra janelar
e somente observar parece vivo.
Tudo lança um sabor complementar
de forte inteligência como em livro.

Cada pássaro que em seu vôo propala
minha extensão, deseja que eu consinta.
E eu consinto. Essa força sucinta
não me apavora mais, pois me embala.

Me encontrarão, no anoitecer profundo,
depois de ter passado o dia inteiro,
janela incansável, em teu celeiro,
para ser outra metade do mundo.

Homenagem ao meu amigo Guilherme Gontijo.
Fonte: RILKE, Rainer Maria. As Janelas, seguidas de poemas em prosa franceses. Organização e tradução de Bruno Silva D'Abruzzo e Guilherme Gontijo Flores. Belo Horizonte: Crisálida, 2009.

Pintura: Morning in a city, de Edward Hopper, sem data.

sábado, fevereiro 13, 2010

Voltaire, Lisboa e Haiti

Ó infelizes mortais, ó terra deplorável
Ó ajuntamento assustador de seres humanos! Eterna diversão de inúteis dores! Filósofos alienados que proclamam:“tudo vai bem”. Venham contemplar essas ruínas horrendas

esses destroços, esses farrapos, essas cinzas malditas, essas mulheres e essas crianças amontoadas sob mármores partidos, seus membros espalhados;

Cem mil desafortunados que a terra devora, que sangrando, dilacerados, e ainda palpitando enterrados sob seus tetos, sucumbem sem socorro, no horror de tormentas findando seus dias!

Diante dos gritos de suas vozes moribundas, do horror de suas cinzas ainda crepitantes, vocês dirão: ” é a conseqüência de leis eternas que um Deus livre e bom resolveu aplicar?!”

Vocês dirão, vendo esse amontoado de vítimas: “Deus vingou-se,e a morte deles é o preço de seus crimes?!”

Que crime, que falta cometeram essas crianças esmagadas e sangrentas sobre o seio materno? Lisboa, que não mais existe, teria mais vícios que Londres, que Paris, submersas em delícias?

Lisboa está destruída e dança-se em Paris.

espectadores tranqüilos, intrépidos espíritos, contemplando a desgraça desses moribundos, vocês procuram – em paz – as causas do desastre:

mas quando sentem os golpes dos fados inimigos, tornam-se mais humanos e choram como nós. creiam-me: quando a terra abre seus abismos, meu lamento é inocência e meu grito é verdade sempre cercados pelas crueldades do acaso,

pelo furor dos malvados, pelas armadilhas da morte experimentado o abalo de todos elementos,
companheiros de nossos males, permitam lastimá-los.
É o orgulho, dizem vocês, o orgulho sedicioso, que almeja que indo mal, nós possamos ser melhores. Vão interrogar as margens do Tejo;

Escavem nos destroços dessa ruína sangrenta;

Perguntem aos moribundos nesse átimo de espanto se é o orgulho que grita “Ó céu, socorre-me! Ó céu, tenha piedade da miséria humana!”

“Tudo vai bem – dizem vocês – e tudo é necessário”
Por acaso o universo, sem esse abismo, infernal, sem submergir Lisboa, estava sendo pior?

Este poema foi escrito por Voltaire, por ocasião do terremoto que destruiu Lisboa em 1756. Cabe, em alguns momentos, ao que aconteceu no Haiti.
Fonte: Programa Provocações, da TV Cultura.

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Menina Jesus

Valei-me, minha menina Jesus
minha menina Jesus
minha menina Jesus, valei-me.

Só volto lá a passeio
no gozo do meu recreio,
só volto lá quando puder
comprar uns óculos escuros.

Com um relógio de pulso
que marque hora e segundo,
um rádio de pilha novo
cantando coisas do mundo --
pra tocar.

Lá no jardim da cidade,
zombando dos acanhados.
dando inveja nos barbados
e suspiros nas mocinhas...

Porque pra plantar feijão
eu não volto mais pra lá
eu quero é ser Cinderela,
cantar na televisão...

Botar filho no colégio,
dar picolé na merenda.
viver bem civilizado,
pagar imposto de renda.

Ser eleitor registrado,
ter geladeira e tv,
carteira do ministério,
ter cic, ter rg.

Bença, mãe.
Deus te faça feliz
minha menina Jesus
e te leve pra casa em paz.

Eu fico aqui carregando
o peso da minha cruz
no meio dos automóveis,
mas

Vai, viaja, foge daqui
que a felicidade vai
atacar pela televisão

E vai felicitar, felicitar
felicitar, felicitar
felicitar até ninguém mais
respirar.

Acode, minha menina Jesus
minha menina Jesus
minha menina Jesus, acode.

No Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=YJs1zqRhDCc

Composição: Tom Zé

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Os dias

Esses dias vi você piscando. É, vi você piscando esses dias. Principalmente, depois do cinema. Você piscando esses dias. Às vezes piscava muito. Não sei o motivo por que piscava tanto às vezes, mas é verdade, você piscava muito. Ah, os óculos. Será? Não. Aquilo, lembra?, aquilo que você me disse esses dias piscando: pensei que fosse mentira – claro, você piscava como alguém que contava uma baita mentira. Isso tudo foi esses dias. Tudo. Você piscava como se gostasse de brincar de deixar o olho seco, qual criança que faz isso só para irritar. Olho seco se irrita e aí você se força a piscar. Foi por isso que te vi piscando esses dias. Você estava brincando. Mais um motivo para eu acreditar que era mentira. E você mente, hein? Sei que está mentindo para mim. Como? Você estava brincando esses dias – brincando e piscando. É por isso que eu sei. Brincando, piscando, mentindo e tentando. Entender o quê? Já expliquei demais e estou dando assunto para você continuar com isso, não acha? Que a gente consegue? Deixa de piscar. Vai virar cacoete. Então vai cuidar do seu sono. Você vai querer cacoete pra quê? Lê aquele livro e descobre a cor dele. O título está de acordo com o que tem dentro? O samba tem bom ritmo? A pesquisa referenda bem a realidade? E aquela destruição toda do jornal? Deve ter sido um barulho matador. E as crianças, as velhas, você viu? E aquela violência? À toa toda dor? Parece até brincadeira, né? Mas, não é. É verdade. Ah, já sei por que você está piscando agora – igual esses dias. Não é cacoete nem brincadeira. Tudo bem, eu sei. Pode chorar. Eu concordo com você – os dias estão muito difíceis.