terça-feira, outubro 27, 2009

Consolo para iniciantes

Vejam a criança em meio aos porcos que grunhem,
Desamparada, com os dedos dos pés dobrados!
Não pode senão chorar, somente chorar -
Aprenderá algum dia a se erguer e andar?
Não receiem! Logo, creio,
Poderão vê-la dançar!
Quando se puser sobre as duas pernas
Também se porá de cabeça para baixo.
Bela e cruel ironia de Friedrich Nietzsche, em "A gaia ciência".


Trecho do filme "Nós que aqui estamos por vós esperamos" (1999),
de Marcelo Masagão.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Último Romance

Eu encontrei quando não quis
Mais procurar o meu amor
E quanto levou foi pr'eu merecer
Antes um mês e eu já não sei

E até quem me vê lendo o jornal
Na fila do pão, sabe que eu te encontrei
E ninguém dirá que é tarde demais
Que é tão diferente assim
Do nosso amor a gente é que sabe, pequena

Ah vai!
Me diz o que é o sufoco que eu te mostro alguém
Afim de te acompanhar
E se o caso for de ir à praia eu levo essa casa numa sacola

Eu encontrei e quis duvidar
Tanto clichê deve não ser
Você me falou pr'eu não me preocupar
Ter fé e ver coragem no amor

E só de te ver eu penso em trocar
A minha TV num jeito de te levar
A qualquer lugar que você queira
E ir onde o vento for
Que pra nós dois
Sair de casa já é se aventurar

Ah vai, me diz o que é o sossego
Que eu te mostro alguém afim de te acompanhar
E se o tempo for te levar
Eu sigo essa hora e pego carona pra te acompanhar

Composição: Rodrigo Amarante
Banda: Los Hermanos

domingo, outubro 18, 2009

Uma experiência

Pergunto-me quanto à nossa época:
"De onde vem essa gana por conhecimento? Fala-se tanto da atual conjuntura para o exercício do pensamento (como sendo favorável para tal), de um aumento significativo na venda de livros potencialmente estimuladores do pensar, mas a crítica me parece tão burra. Será essa gana um fato realmente?"
Tanto quanto se diz da importância das Ciências Humanas para os dias de hoje e, no entanto, o que se vê é o seu sucateamento, desmerecimento e mau uso, tanto quanto já se disse, a partir de Foucault, que saber sobre o sexo só serviu para nos confundir ao fazê-lo, ou a recalcá-lo, acontece o mesmo com o exercício do pensamento: admira-se, exacerba-se, mas não se tem a inclinação para nem a experiência do pensar - ao contrário, mastiga-se o pensamento tentando ruminá-lo, mas seu embalsamento em enzimas e inócuos discursos apenas o mumifica. De resto, apenas o esvaziamos de crítica contundente, e simplesmente o engolimos com ajuda de Coca-Cola e Rivotril.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Erro da vontade livre

Hoje já não temos mais nenhuma compaixão pelo conceito de "vontade livre": sabemos muito bem o que ele é - o mais suspeito artifício dos teólogos que existe; um artifício que tem por objetivo fazer com que a humanidade se torne "responsável" à moda dos teólogos, isto é, que visa fazer com que a humanidade seja dependente deles... Eu ofereço aqui apenas a psicologia de toda e qualquer atribuição de responsabilidade. - Onde quer que as responsabilidades sejam procuradas, aí costuma estar em ação o instinto de querer punir e julgar. Despiu-se o vir-a-ser de sua inocência, quando se reconduziram os diversos modos de ser à vontade, às intenções, aos atos de responsabilidade. A doutrina da vontade é inventada essencialmente em função das punições, isto é, em função do querer-estabelecer-a-culpa. Toda a psicologia antiga, a psicologia da vontade, tem seu pressuposto no fato de que seus autores, queriam criar para si um direito de infligir penas - ou queriam ao menos criar um direito para que Deus o fizesse... Os homens foram pensados como "livres", para que pudessem ser julgados e punidos - para que pudessem ser culpados. Conseqüentemente, toda ação precisaria ser considerada como desejada, a origem de toda a ação como estando situada na consciência (- com o que a mais fundamental fabricação de moedas falsas transformou-se, no interior do psicologicismo, em princípio da própria psicologia...). Hoje, quando adentramos o movimento inverso, quando nós imoralistas buscamos novamente com toda a força sobretudo retirar do mundo o conceito de culpa e o conceito de punição, purificando destes conceitos a psicologia, a história, a natureza, as instituições e as sanções comunitárias, não há em nossos olhos nenhum antagonismo mais radical do que o em relação aos teólogos que continuam a infectar a inocência do vir-a-ser com as noções de "punição" e "culpa", a partir do conceito de "ordem moral do mundo". O cristianismo é uma metafísica de carrasco...
Friedrich Nietzsche, "Crepúsculo dos ídolos", Os quatro grandes erros, af. 7.