domingo, fevereiro 28, 2010

As Janelas

XII

Hoje estou com humor pra janelar
e somente observar parece vivo.
Tudo lança um sabor complementar
de forte inteligência como em livro.

Cada pássaro que em seu vôo propala
minha extensão, deseja que eu consinta.
E eu consinto. Essa força sucinta
não me apavora mais, pois me embala.

Me encontrarão, no anoitecer profundo,
depois de ter passado o dia inteiro,
janela incansável, em teu celeiro,
para ser outra metade do mundo.

Homenagem ao meu amigo Guilherme Gontijo.
Fonte: RILKE, Rainer Maria. As Janelas, seguidas de poemas em prosa franceses. Organização e tradução de Bruno Silva D'Abruzzo e Guilherme Gontijo Flores. Belo Horizonte: Crisálida, 2009.

Pintura: Morning in a city, de Edward Hopper, sem data.

sábado, fevereiro 13, 2010

Voltaire, Lisboa e Haiti

Ó infelizes mortais, ó terra deplorável
Ó ajuntamento assustador de seres humanos! Eterna diversão de inúteis dores! Filósofos alienados que proclamam:“tudo vai bem”. Venham contemplar essas ruínas horrendas

esses destroços, esses farrapos, essas cinzas malditas, essas mulheres e essas crianças amontoadas sob mármores partidos, seus membros espalhados;

Cem mil desafortunados que a terra devora, que sangrando, dilacerados, e ainda palpitando enterrados sob seus tetos, sucumbem sem socorro, no horror de tormentas findando seus dias!

Diante dos gritos de suas vozes moribundas, do horror de suas cinzas ainda crepitantes, vocês dirão: ” é a conseqüência de leis eternas que um Deus livre e bom resolveu aplicar?!”

Vocês dirão, vendo esse amontoado de vítimas: “Deus vingou-se,e a morte deles é o preço de seus crimes?!”

Que crime, que falta cometeram essas crianças esmagadas e sangrentas sobre o seio materno? Lisboa, que não mais existe, teria mais vícios que Londres, que Paris, submersas em delícias?

Lisboa está destruída e dança-se em Paris.

espectadores tranqüilos, intrépidos espíritos, contemplando a desgraça desses moribundos, vocês procuram – em paz – as causas do desastre:

mas quando sentem os golpes dos fados inimigos, tornam-se mais humanos e choram como nós. creiam-me: quando a terra abre seus abismos, meu lamento é inocência e meu grito é verdade sempre cercados pelas crueldades do acaso,

pelo furor dos malvados, pelas armadilhas da morte experimentado o abalo de todos elementos,
companheiros de nossos males, permitam lastimá-los.
É o orgulho, dizem vocês, o orgulho sedicioso, que almeja que indo mal, nós possamos ser melhores. Vão interrogar as margens do Tejo;

Escavem nos destroços dessa ruína sangrenta;

Perguntem aos moribundos nesse átimo de espanto se é o orgulho que grita “Ó céu, socorre-me! Ó céu, tenha piedade da miséria humana!”

“Tudo vai bem – dizem vocês – e tudo é necessário”
Por acaso o universo, sem esse abismo, infernal, sem submergir Lisboa, estava sendo pior?

Este poema foi escrito por Voltaire, por ocasião do terremoto que destruiu Lisboa em 1756. Cabe, em alguns momentos, ao que aconteceu no Haiti.
Fonte: Programa Provocações, da TV Cultura.

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Menina Jesus

Valei-me, minha menina Jesus
minha menina Jesus
minha menina Jesus, valei-me.

Só volto lá a passeio
no gozo do meu recreio,
só volto lá quando puder
comprar uns óculos escuros.

Com um relógio de pulso
que marque hora e segundo,
um rádio de pilha novo
cantando coisas do mundo --
pra tocar.

Lá no jardim da cidade,
zombando dos acanhados.
dando inveja nos barbados
e suspiros nas mocinhas...

Porque pra plantar feijão
eu não volto mais pra lá
eu quero é ser Cinderela,
cantar na televisão...

Botar filho no colégio,
dar picolé na merenda.
viver bem civilizado,
pagar imposto de renda.

Ser eleitor registrado,
ter geladeira e tv,
carteira do ministério,
ter cic, ter rg.

Bença, mãe.
Deus te faça feliz
minha menina Jesus
e te leve pra casa em paz.

Eu fico aqui carregando
o peso da minha cruz
no meio dos automóveis,
mas

Vai, viaja, foge daqui
que a felicidade vai
atacar pela televisão

E vai felicitar, felicitar
felicitar, felicitar
felicitar até ninguém mais
respirar.

Acode, minha menina Jesus
minha menina Jesus
minha menina Jesus, acode.

No Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=YJs1zqRhDCc

Composição: Tom Zé