quarta-feira, dezembro 24, 2008

Quanta clareza podemos suportar?

Recebi de um amigo recentemente um artigo de Bernardo Carvalho, publicado na Folha de São Paulo em 13 de março de 2007, de cujo título se serve este post. Ainda que já tenha se passado quase dois anos de sua publicação, o artigo não deixa de ser um ótimo voto de boas vindas para 2009. Saúde, paz, trabalho e pensamento crítico.... por favor, minha gente.


COMO JACKSON Pollock dez anos antes, Frank O'Hara (1926-66) também morreu num acidente de carro. Era poeta e crítico de arte. No número 19 da revista de poesia "Inimigo Rumor" (7 Letras/CosacNaify), que acaba de chegar às livrarias, há um texto de O'Hara sobre a "action painting" (pintura de ação) de Pollock. A certa altura, o poeta pergunta: "Quanta clareza um ser humano é capaz de suportar?". Dependendo da época e das circunstâncias, não muita. E, em geral, não por muito tempo. A epígrafe com a qual O'Hara abre o texto foi tirada de um ensaio autobiográfico do poeta russo Boris Pasternak e diz o seguinte: "Uma verdade universalmente reconhecida muitas vezes tem de esperar por uma rara ocasião, um golpe de sorte que lhe sorria uma única vez numa centena de anos, antes de achar uma aplicação". A arte de Pollock é uma dessas verdades. Sem referência a imagens exteriores, dispersando a tinta com o pincel no ar, em movimentos nervosos sobre a tela deitada no chão do ateliê, Pollock fez uma revolução. A "realidade física do artista e sua ação para expressá-la" passaram a se unificar espiritualmente "em um todo que prescinde da mediação da metáfora ou do símbolo". Um raro estado de clareza espiritual que todo artista gostaria de alcançar, mas que apenas a vontade não garante: "O esforço para atingir esse estado é enorme e excruciante, e, uma vez alcançado, não é menos doloroso mantê-lo". Muitas vezes, como diz Pasternak, é preciso esperar uma centena de anos. Na pintura de Pollock, a ação passa a ser "imediatamente arte, não a arte mediada pela vontade, por uma postura estética". Ou seja, um estado em que a obra já não precisa se explicar, se justificar ou dizer a que veio: não eram as pinturas que haviam mudado, "o que mudara era o mundo ao redor", escreve O'Hara. Hoje, não é só a arte, perdida em explicações capengas que tentam dar sentido e sustentação à ausência ou insuficiência de obra, mas o próprio pensamento (filosófico, social e político) que, perplexo e constrangido pela incapacidade de dar conta do presente por meio de certezas do passado, se vê cada vez mais encurralado na sua impotência. O intelectual que antes, enquanto a crueza da realidade não o atingia diretamente, pensava da boca para fora, repetindo idéias recebidas e bem-postas, uma vez confrontado para valer com as contradições e a violência da realidade, ou se cala, sem saber o que fazer com antigos dogmas, ou deixa cair a máscara e passa a reproduzir o senso comum, como se ceder a um sentimento corrente e a uma moral irrefletida fosse sinal de recém-conquistada originalidade. Ou seja, se antes já era incapaz de produzir um pensamento original, agora, quando mais precisa intervir (e quando mais precisam da sua intervenção), revela-se simplesmente incapaz de pensar. No pior dos casos, rende-se ao perigo público das suas próprias limitações. Há poucas semanas, num perfil publicado pela "The New Yorker", Paul e Patricia Churchland, professores de filosofia da Universidade de San Diego, fascinados pela neurociência, antecipavam com entusiasmo o dia em que será possível prevenir o mal social, instalando mecanismos coercitivos no cérebro dos maus elementos: ao menor sinal de raiva no indivíduo considerado anormal pela sociedade, o mecanismo o "derrubaria automaticamente com uma boa dose de Valium". Na adolescência, Paul Churchland foi fã do escritor de ficção científica Robert Heinlein, autor, entre outras, de uma fábula na qual os condenados de uma sociedade futura ou aceitavam sofrer um "reajuste psicológico" ou eram confinados num território murado, entre outros condenados que também não quiseram se submeter à operação. E o que mais incomodava Churchland na história era o fato de o autor tomar o partido dos personagens que se recusavam a "ter o cérebro convertido ao normal". A solução sonhada pelo casal Churchland, em San Diego, tem cada vez mais defensores mundo afora. Gente que, acuada pela proximidade da barbárie, acaba inadvertidamente se tornando agente da sua propagação, já que não tem mais condições para refletir sobre o que vê à sua volta, sobre suas causas e eventuais soluções. Resta torcer para que os que ainda conseguem vislumbrar as conseqüências da fábula escrita por Robert Heinlein continuem pensando. E que, se não for possível atingir a curto prazo um estado de clareza espiritual equivalente ao mencionado por Pasternak e O'Hara, que pelo menos se atenham a níveis mínimos de bom senso.
Foto: o pintor Jackson Pollock (1912-1956).

quinta-feira, dezembro 18, 2008

Omnibus

Manhã chuvosa trouxe esta segunda-feira. A sensação de suavidade, apesar da força com que a água acariciava a rua, era muito diferente do clima de janela-fechada, úmido e abafado, que se percebia dentro do ônibus. Cada passageiro com seu guarda-chuva, com sua bolsa, seu celular e seu mp3 à mão. Apetrechos, acessórios, pensamentos, músicas... mundos diferentes. Quantos deles estão presentes dentro de um ônibus? Talvez redes deles. Redes apressadamente incomunicáveis, mundos fechados, abismos dos mais abissais... "O coração é terra que ninguém pisa", dizem, ou seja, é mundo desconhecido. Não há dúvida, se somos estrangeiros para nós mesmos, imagine o que somos uns para os outros. Mas, em algum momento, essencialmente especial, uma porta se abre. Será que foi em um momento como esse que Michelangelo pensou o toque?

Pintura: “A criação de Adão”, de Michelangelo Buonarroti (1475-1564).